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O testemunho da busca das origens na adoção e os restos da memória

Aletheia, volumen 3, número 6, julio 2013. ISSN 1853-3701

 

Coimbra en PDF / Artículos de otras M y D

José César Coimbra*

      Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ)

 & Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio)

2013

Rio de Janeiro, Brasil

      arcoim@yahoo.com.br

arcoim@gmail.com

     

Resumo

Investigamos a relação entre adoção, testemunho e memória com base em pesquisa documental e bibliográfica. Apresentamos as legislações brasileiras sobre adoção, em particular no que se referem à busca das origens; analisamos as noções de testemunho e comunidade, tais como utilizadas por Giorgio Agamben e Jean-Luc Nancy; e descrevemos a polarização entre esquecimento e lembrança que se manifesta na adoção. Concluímos que a memória expressa na busca das origens não se dissocia de um resto que a operação simbólica de constituição da família substituta institui. Esse resto responde pelo nome de família natural, denominação advinda do processo judicial que permitiu a adoção.

Palavras chave: adoção; testemunho; comunidade; memória

 

Resumen

Investigamos la relación entre la adopción, testimonio y memoria basada en investigación documental y bibliográfica. Para tal fin, presentamos la legislación brasilera sobre adopción, en particular en lo que se refiere a la búsqueda de los orígenes, analizamos las nociones de comunidad y testimonio, de acuerdo con la definición de Giorgio Agamben y Nancy Jean-Luc; y describimos la polarización entre el olvido y el recuerdo que manifiesta en la adopción. Concluimos que la memoria revelada en la búsqueda de los orígenes no se disocia del resto que la operación simbólica de constitución de la familia sustituta establece. Ese resto responde por el nombre de familia natural, denominación proveniente del proceso judicial que permitió la adopción.

Palabras clave: adopción; testimonios; memoria; comunidade

 

Introdução

   O objetivo deste artigo é o de analisar a relação entre adoção, testemunho, busca das origens e memória. Seja com base nas redes sociais, na literatura, na televisão ou no cinema, deparamo-nos com inúmeros exemplos de apresentação e transmissão da experiência adotiva, em particular no que se refere à busca de informações sobre o passado do adotado. Em alguns casos essa transmissão assume contornos mais explícitos de um testemunho, sobretudo quando está em jogo o relato relativo à tentativa de obtenção de informações sobre o passado pré-adotivo. Podemos reconhecer nesse contexto uma articulação muito estreita entre a memória assumida como própria, oriunda em grande medida de narrativas da família adotiva, e outra, que na primeira se insinua, advinda de um conjunto de referências: reminiscências, dados esparsos sobre o passado, interrogações. Na interseção dessas memórias o adotado pergunta-se sobre quem é, sobre os motivos de seu abandono (pela família natural) e escolha (pela família adotiva).

   Dado esse quadro, este trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica e documental, desdobrando-se (i) na apresentação das legislações brasileiras sobre adoção, em particular no que se referem à busca das origens; (ii) na análise do testemunho, sobretudo a partir de Giorgio Agamben; (iii) na definição de comunidade, tal como realizada por Jean-Luc Nancy; (iv)  na avaliação sobre o significado da polarização entre esquecimento e lembrança, manifesto na demanda adotiva.

 

Adoção: As origens

A alteração promovida no Estatuto da Criança e do Adolescente (199) – ECA pela então denominada Lei Nacional de Adoção (2009) – LNA, na qual a garantia de direito às informações sobre a ‘origem biológica’ do adotado e todos os demais detalhes sobre o seu processo de adoção ficam expressamente assegurados, é o ponto de partida deste trabalho. No artigo 48 do ECA podemos ler que: “O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos” (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990). 

Nota-se que o artigo 48 da Lei 12010/09 marca uma diferença substancial frente ao previsto originalmente pelo Estatuto, uma vez que ali não havia nenhuma menção ao direito de informação sobre ‘as origens’ do adotado. Todavia, esse direito já era assegurado pela Convenção Internacional de Direitos da Criança (1989) – CIDC, sem menção, contudo, ao termo ‘origem biológica’:

A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles (art.7,1).

Os Estados-partes se comprometem a respeitar o direito da criança, de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interferências ilícitas (art. 8,1).

No caso de uma criança se vir ilegalmente privada de algum ou de todos os elementos constitutivos de sua identidade, os Estados Partes fornecer-lhe-ão assistência e proteção apropriadas, de modo que sua identidade seja prontamente restabelecida (art. 8,2).

Os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança (art. 9,3);

Esse aspecto do ECA já havia chamado a atenção de alguns autores, como, por exemplo, Fonseca (1995). A autora aponta que, de fato, a igualdade de direitos entre o adotado e os filhos naturais garantida no ECA teve ao menos um efeito colateral. À diferença do que existia com o Código de Mello Matos (1927) e com o Código de Menores (1979), tornou-se fácil o apagamento da história de vida do adotado, no que se refere a sua relação com a família dita natural.

Em termos práticos, lembramos que a partir do ECA a certidão de nascimento do adotado não comporta nenhuma menção à sua família natural, havendo, de direito, a efetiva alteração de sua árvore genealógica. Esse contexto poderia ser diferente quando da vigência do Código de Menores, dada a distinção entre adoção simples e adoção plena, a qual ainda se encontra em vigor em alguns países, como Argentina e França. É interessante observar que a Convenção Europeia sobre Adoção, a qual se encontra em processo de ratificação pelos países membros da União Europeia, não exclui a possibilidade de coexistência da ‘adoção simples’, na qual não há rompimento absoluto entre os vínculos do adotado com sua família de origem, e ‘adoção plena’, na qual o mencionado rompimento é efetivo (Conseil de l’Europe, 2008).

Nota-se empiricamente que existe no Brasil forte resistência dos pais adotivos em abordar com o adotado as peculiaridades de seu laço de filiação. Em parte, essa resistência se reflete na demanda maciça pela adoção de recém-nascidos ou, no máximo, até os dois anos de vida, o que periodicamente é divulgado na mídia. Além disso, como vimos há pouco, apenas com a Lei 12010/09 esse tópico foi explicitamente abordado na legislação brasileira voltada para a infância. Esse quadro sugere que da perspectiva legal não havia, justamente na lei que regula a adoção, exigência expressa de garantia desse direito. Ao contrário do que ocorre no Brasil, percebe-se há tempos em outros países, como os EUA, intenso debate acerca não só da garantia de acesso a esse tipo de informação por parte do adotado, mas também quanto ao modo como esse acesso poderá ser realizado (Howard; Smith & Deoudes, 2010).

À margem da busca das garantias legais citadas, encontra-se uma pletora de grupos, sobretudo nas redes sociais, como Orkut ou Facebook, por exemplo, que dão voz a essa demanda de informações sobre as origens do adotado. Muitas vezes, esses grupos explicitamente mencionam a necessidade da busca empreendida em função do encontro da ‘identidade biológica’ que seria desconhecida. A fim de ilustrar a articulação de adotados em busca de informações sobre sua história de vida, podemos citar o sítio eletrônico ‘Filhos adotivos do Brasil’ e, no Facebook, os perfis ‘Busco a mi mamá biológica’ e ‘Network -of- Overseas Korean Adoptee Artists -  N.O.K.I.A.A.’. No Facebook, o perfil ‘Busco a mi mamá...’ possui mais de 1000 amigos; quanto ao ‘N.O.K.I.A.A.’, trata-se de uma rede de artistas coreanos adotados no exterior. Artistas que em suas formas de expressão têm, em boa parte, a história de adoção como causa. Ainda no Facebook há o grupo ‘Eu procuro meu pai biológico’, no qual se revela uma intensa interação entre pessoas que possuem esse mesmo objetivo.

Se nos deparamos acima com a notação ‘origem biológica’ quando falamos sobre a Lei 12010/09, também verificamos que a ‘busca das origens’ faz-se presente para muitos adotados, inclusive constituindo-se como tema de trabalho para vários deles, como no NOKIAA. Se a CIDC não fez menção à ‘origem biológica’ ao invocar o direito de informações sobre o passado, é interessante observar que o legislador brasileiro tenha feito apelo a tal formulação. Seria o movimento de volta ao passado, da busca de uma memória perdida, de uma história que não chegou a ser vivida como tal, a busca de uma identidade biológica? Ou a tentativa do encontro de um verdadeiro ‘eu’ que repousaria esquecido? O que esse movimento poderia significar? Como já observado, o uso de notações como ‘busca da origem’, ‘busca das origens’ é muito frequente nos discursos associados à adoção (Fonseca, 2009; Pertman, 2011).

Nesse sentido, os filmes 33, de Kiko Goiffman, brasileiro, e Separées, de Sophie Brédier, francesa de origem coreana, integrante do NOKIAA, sintetizam as interrogações levantadas no parágrafo precedente. Ainda que com estilos bem diferentes, a despeito de serem filmes autobiográficos, ambos propõem uma busca pelo passado de seus realizadores, passado que acentua a divisão família natural, família adotiva. Ao mesmo tempo, suas buscas interrogam sobre o que seria sido perdido e as construções da memória que aí ocorrem.

Nessa linha, se nos filmes mencionados seus realizadores são ao mesmo tempo seus protagonistas, podemos entender ambos os trabalhos como testemunhos da tentativa de apreensão do passado e das questões a ele associadas. Dentre essas questões o limite do que se supõe identidade é revelado: por que fui adotado/a? Quem era a minha família de origem? Sou parecido/a com meus pais naturais ou com meus pais adotivos? Qual era o meu nome de nascimento? Onde encontrar informações sobre meu passado? Aquela música que me acompanha, é uma lembrança de que tempo? Sou coreana ou francesa? Guardados os ajustes necessários, essas são perguntas que se repetem na voz de muitos adotados, como, por exemplo, nos filmes citados.

 

Testemunho: Resto de palavras

De certa forma, nessa lista que se estenderia, encontramos semelhanças com a análise feita por Agamben sobre o arquivo e o testemunho (Agamben, 2008). Não por acaso, há em alguns trabalhos desse autor, em particular quando se refere ao arquivo e ao testemunho, formulações acerca do resto. Nesse sentido, temos na apresentação de Gagnebin (2008) que:

[...] O resto indica muito mais um hiato, uma lacuna, mas uma lacuna essencial que funda a língua do testemunho em oposição às classificações exaustivas do arquivo. [...] podemos entender melhor esse ‘resto’ como aquilo que, no testemunho, solapa a própria eficácia do dizer e, por isso mesmo, institui a verdade de sua fala; e, no tempo humano, como aquilo que solapa a linearidade infinita do chronos e institui a plenitude evanescente do tempo-de-agora como kairos messiânico (p.11).

Se o resto é diretamente abordado por Agamben em mais de um trabalho (Agamben, 2004), podemos constatar que algo dessa dimensão estaria presente nos filmes indicados acima. De fato, a busca de respostas encontra para cada realizador um limite que jamais chega a realizar-se: Goiffman não encontra muitas informações sobre sua mãe biológica ou sobre as razões dela não ter permanecido com ele; Brédier confronta-se ante sua mãe adotiva com uma questão sem resposta. As considerações acerca do resto e do testemunho em Agamben não estão desvinculadas das elaborações em que distingue testemunho e arquivo: o arquivo “designa o sistema das relações entre o não-dito e o dito” (Agamben, 2008, p.146), isto é, no limite, do não-dito implícito no dito ou do não-dito que poderia ser dito; o testemunho, diferentemente, designa “o sistema das relações entre o dentro e o fora da langue [...], entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer” (Agamben, 2008, p.146).

Sarlo (2007), acrescenta um comentário sobre a relação entre testemunho e experiência que nos é de particular relevância, uma vez que está na base da escolha que fizemos para compor o objeto de nossa análise aqui:

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (p.24-25).

Voltando a Agamben, não nos deve passar despercebido que seu projeto é, em parte, fazer avançar as análises de Foucault acerca do biopoder. Quanto a isso, se Foucault não abordou diretamente o tema adoção em seus trabalhos, a questão dos mecanismos institucionais de acolhimento de crianças não passou ao largo de ao menos um comentário seu (Foucault, 1979, p.200 e 204).

A adoção é, de certo modo, indissociável desse tipo de questão, embora nem toda adoção esteja relacionada à institucionalização de crianças ou adolescentes. Há casos nos quais o adotando migra quase que diretamente da família natural para a família adotiva. Todavia, havendo ou não a institucionalização, tal como a Lei 12010/09 nos permite ver, a intervenção do Estado e a consequente produção de saberes sobre o adotando, sua família de origem e a família adotiva é a constante no cotidiano das práticas relativas à colocação em família substituta.

Esses saberes atualizam-se no discurso da assistência social e naquele relativo ao sistema judicial. Nesse sistema, nota-se não apenas a figura do juiz, seus argumentos acerca da possibilidade ou não da destituição do poder familiar, isto é, do desligamento legal e definitivo do adotando de sua família de origem, condição de base para a adoção, mas também o discurso das equipes técnicas interdisciplinares, basicamente compostas por psicólogos e assistentes sociais. Esses discursos atualizam-se na forma de pareceres e laudos que sintetizam avaliações e registros e, de certa forma, fazem existir um passado e um sujeito que é objeto da ação judicial. Uma análise sobre a relação entre memória, arquivo e testemunho encontra nesse ponto um elemento importante sobre o qual deter-se a fim de apreciar as possíveis inter-relações entre seus constituintes.

Por vezes, a busca pelo passado, que poderia levar ao encontro de uma memória não vivida (Dürrenmatt, 2003), terá como base quase que exclusivamente esses discursos fixados em arquivos os quais poderão ser ou não confrontados com testemunhos. Em que pese a previsão legal de garantia de direito do adotado de acesso às informações sobre seu passado, estamos ainda longe do que já é feito no Reino Unido e na França através do Adoption, Search, Reunion (SAR), da Coordination des Actions pour le Droit à la Connaissance des Origens (Cadco) e do Conseil National pour l’Accès aux Origines Personnelles (CNAOP).

 

Adoção: Do estranho ao familiar

A adoção, segundo o artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990): “[...] atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”.

A definição acima nos permite entender que em grande medida a adoção é um movimento de assimilação do que seria estrangeiro, tornando-o familiar. Para o que nos importa aqui, esse instituto, “conjunto de regras e princípios jurídicos que regem determinadas entidades ou situações de direito” (Houaiss, 2009), pretende criar um laço de pertencimento entre o até então estranho e a comunidade que o irá acolher. De fato, a adoção é uma prática social que data de séculos, ainda que ao longo do tempo ela não tenha permanecido a mesma. Um rápido lance de olhos sobre a história da adoção reitera essa perspectiva: seja no Código de Hammurabi (1979), no qual nos deparamos com vários artigos que a invocam já no século XVII AC, seja na Roma antiga, quando a adoção por razões políticas e religiosas foi muito disseminada, ilustrando à perfeição a extensão do poder do pater familias. Durante a Idade Média essa prática é eclipsada, voltando a ter larga visibilidade após a I Guerra Mundial.

Nesse contexto, a adoção, de certo modo, passa a ser incentivada quase como uma política de Estado, a fim de permitir o acolhimento de inúmeras crianças órfãs. Hoje nota-se que o impulso à adoção é preponderante em famílias que não puderam conceber naturalmente seus filhos e quanto às quais técnicas de reprodução assistida não se mostraram eficazes. Esse perfil, todavia, está em rápida transformação, como aponta Pertman (2011). Registre-se ainda que hoje o percentual de órfãos envolvidos na adoção é mínimo. No Brasil, como mencionado anteriormente, transparece a resistência de famílias adotantes em abordar com o adotado as peculiaridades desse laço de filiação.

Cabe também frisar que quanto a crianças e adolescentes institucionalizados, apenas uma parcela mínima deles está efetivamente livre em termos legais para adoção (Silva; Gueresi, 2003). Desse modo, entende-se também que cada adoção realizada aponta ou, de certo modo, comporta um universo de adoções que não se realizou. Na mesma medida, o testemunho do adotado sobre sua adoção ou sobre a busca de suas origens pode comportar a história desses outros, muitos dos quais jamais serão adotados.

Descrito em suas linhas gerais o cenário no qual a adoção se desenvolve, podemos indagar se ao contrário do que a Lei 12010/09 garante, a busca das origens na adoção poderia implicar a demonstração não da tentativa de encontro da identidade biológica, mas o caráter ficcional e eminentemente simbólico da construção da subjetividade. Nos termos que desenvolvemos aqui, essa busca seria não apenas por informações sobre a família natural, mas também um modo de presentar o que permanece como não familiar no adotado, sua face estrangeira ou, ainda, impessoal.

Se a ficção constituída pelo ato jurídico da adoção, desdobrada em uma nova certidão de nascimento para o adotado, pode ser supostamente esquecida, tal como revela o silêncio dos pais adotivos, a busca das origens poderia nos assinalar algo diferente. Não restaria aí a indicação de uma contingência? Não notaríamos que nesse encontro entre adotantes e adotados outras virtualidades poderiam ter sido atualizadas e, com elas, o mesmo jogo entre o que se tornaria familiar e o que permaneceria estranho ao arranjo estabelecido, o resto inassimilável de toda constituição subjetiva? Talvez encontremos no tema da comunidade algo que nos seja de valia acerca dessa questão.

 

O testemunho de uma comunidade?

A pergunta feita por Agamben (2008), ‘quem é o sujeito do testemunho?’ (p.124), deve ecoar neste trabalho. Ao buscarmos os testemunhos de busca das origens dos adotados, talvez possamos nos deparar ali com essa pergunta. Afinal, quem daria esse testemunho? O adotado, no sentido daquele que foi assimilado a sua constelação familiar? Ou, diferentemente, algo nele que ante essa assimilação resistiria, o estrangeiro, aquele que ‘é de fora’, como a etimologia dessa palavra revela?

Se a pergunta enunciada por Agamben aponta para algo da ordem de uma divisão subjetiva, parece-nos que a busca das origens, a seu modo, aponta também no mesmo sentido. Na letra desse autor, aparecem estritamente relacionados testemunho e dessubjetivação. Isso ocorre, em um primeiro momento, devido ao entendimento de Agamben de que a verdadeira testemunha, no caso da Shoah, é o denominado muçulmano, aquele que foi até o fim da experiência do campo de concentração e, assim, já não pode falar sobre isso.

Desse modo, os sobreviventes são testemunhas vicárias, precisam falar ‘em nome de’ e, nesse movimento, revelam uma mudança em sua posição subjetiva. É isso que pode ser observado nestas citações: “[o] sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma dessubjetivação” (Agamben, 2008, p.124) e “[o] sujeito ético [...] é o sujeito que dá testemunho de uma dessubjetivação” (Agamben, 2008, p.151). No nosso campo de estudo esse tipo de experiência será buscado exatamente no jogo entre presente e passado construído pela memória e por suas lacunas. Isto é, movimento de busca no passado por algo que se acredita talvez conter uma verdade que revelaria outro ‘eu’.

Seja o tema do testemunho, seja o da adoção, ambos portam a figura do outro como elemento importante de análise. Quanto à adoção, em particular, esse outro passa por diversas atualizações, encarnando-se nas figuras de pai adotivo, mãe adotiva, mãe natural, pai natural...uma série quase infinita. Trata-se, de fato, de uma verdadeira comunidade na qual, e com relação à qual, o adotado deve posicionar-se. Como dissemos antes, a interrogação sobre passado poderia apontar precisamente para uma não assimilação integral na comunidade adotiva. O que isso significaria?

Poder conceber uma comunidade constituída por uma não assimilação é a justificativa inicial para pautarmo-nos nos trabalhos de Jean-Luc Nancy. Isso porque a comunidade em Nancy caracteriza-se exatamente pela relação entre um ‘em comum’ e outro ‘não absorvido em uma substância comum’ (Nancy, 2008, p.xxxviii). Portanto, seria em torno da falta de identidade que se prenuncia dessa formulação que Nancy concebe sua comunidade. ‘A comunidade dos sem comunidade’, como escreveu Georges Bataille, eixo em torno do qual o trabalho de Nancy gravita (Fynsk, 2008, p.xv) e com relação ao qual diversos autores firmaram posições, tais como, por exemplo, o próprio Agamben, mas também Maurice Blanchot. O comum, nessa esteira, aponta para um tipo de dissolução da identidade, o que também aparece em Nancy como expressão para o testemunho (Fynsk, 2008, p.xviii). É nessa perspectiva, por exemplo, que encontramos em Agamben a formulação de uma comunidade inessencial (Agamben, 1993).

Em termos de nossa pesquisa, a busca das origens, antes de ser necessariamente a jornada rumo à verdadeira identidade, à identidade biológica, poderia ser, ao lado da garantia de um direito, a afirmação da inexistência de uma substância que pudesse ser tomada como identidade. É no âmbito dessa ‘comunidade’ que entendemos ser pertinente investigarmos o lugar de uma memória dita social, memória que teria por base um ‘resto’ e que seria expressa pelo testemunho. Nancy (2008) escreve: “The gravest and most painful testimony of the modern world, the one that possibly involves all other testimonies to which this epoch must answer […], is the testimony of the dissolution, the dislocation, or the conflagration of community” (p.1).

É importante que sinalizemos o entrelaçamento da adoção como prática social e a sua institucionalização nos diversos modos de funcionamento da justiça. Embora, como acreditamos ter ficado claro, o objetivo deste trabalho seja o discurso acerca da busca das origens do adotado que se atualiza na forma de um testemunho extrajudicial, apontamos que dispositivos legais ordenam, orientam e oferecem visibilidade a esse tema. Isso ocorre de forma, inclusive, a transformar em direito a possibilidade de acesso às informações sobre o passado pré-adotivo. A entendermos o sistema de justiça enquanto prática social que se modifica ao longo da história, como vimos na menção ao Código de Hamurabi e na própria Lei 12010/09, devemos manter próximos de nós a advertência de Foucault (1994): “entre as práticas sociais, cuja análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas ou, mais precisamente, as práticas judiciárias são as mais importantes” (p.540).

 

O testemunho, o tempo, a justiça: Lugar para o esquecimento?

À parte essa observação de Foucault sobre a relação entre práticas judiciárias e emergência de novas formas de subjetividade, cabe sinalizar que alguns autores do campo do Direito fizeram do tema ‘tempo’ terreno profícuo de trabalho e análise. Ost (2005), por exemplo, deve ser mencionado nessa perspectiva, na medida em que nos permite acompanhar quais os possíveis efeitos do discurso do Direito na construção da relação entre tempo e memória. Essa relação, conforme se deduz de sua argumentação, não é sem efeitos quanto à constituição subjetiva daqueles que são lançados à cena jurídica. Gaboriau e Pauliat (2004) também seguem essa mesma linha de investigação e análise: o Direito como instaurador de um tempo no qual à vingança o processo judicial oferece a possibilidade da palavra, da distância, de um outro princípio ordenador das demandas em jogo. Aqui, cabe registrar que é o processo judicial que instaura um novo conjunto de relações entre o adotado e aqueles que então passam a ser reconhecidos como pai, mãe, família natural e família substituta.

Retomando nossas linhas iniciais, nas quais descrevíamos a experiência brasileira recente de regular juridicamente o direito de acesso à informação sobre a história de vida do adotado, devemos apontar um paralelismo a título de registro. Trata-se da analogia temática entre a possibilidade explicitada na Lei 12010/09 e o sancionamento da Lei de Acesso à Informação Pública (2011), bem como da criação da Comissão Nacional da Verdade (2011). Em uma e em outra escala, isto é, no plano mais específico do direito à informação sobre a história de vida do adotado e naquele sobre a verdade referente ao período da ditadura civil-militar no Brasil, vislumbram-se ressonâncias. Em ambos os planos revela-se a uma só vez a importância concedida ao passado e os riscos da cristalização do tempo que poderia advir da hipervalorização do testemunho. Nessas vertentes nota-se a dimensão ética e política da memória e da história, já bastante salientadas por diversos autores (Gondar, 2003; 2005; Sarlo, 2007), bem como o que aí se revela como posição subjetiva daquele que testemunha. Além disso, o paralelismo mencionado ressalta o lugar do silêncio que se quer apagamento da história e da memória seja para o adotado, seja para a sociedade brasileira. Assim como engatinhamos na Lei de Informação Pública e na Comissão da Verdade, a regulação do acesso do adotado às informações sobre seu passado, prevista na Lei 12010/09, resta por se tornar efetiva. Neste momento, sua execução depende do nível de organização do poder judiciário de cada estado.

 

Conclusão

Em que pese a existência de um sem-número de projetos de lei que visam a alterações no ECA, bem como discussões em curso com o objetivo de flexibilizar os critérios definidos na Lei 12010/09 acerca da utilização do cadastro nacional de requerentes à adoção, não encontramos sinais de mobilização em prol da reafirmação da garantia de direito de acesso do adotado às informações sobre seu passado ou sobre sua família natural, tal como previsto legalmente. Em outros países podemos ver experiências distintas.

Se, como apresentamos aqui, o silêncio e o desejo de apagamento da memória e da história seriam constantes comuns na experiência brasileira e na relação entre adotante e adotado, a diferença que se anuncia com a Lei de Acesso à Informação Pública e com a Comissão da Verdade não aparenta o mesmo vigor no que tange à adoção. Em termos institucionais, como descrevemos, persiste ainda um tipo de silêncio, a despeito da Lei 12010/09. Se o desejo de apagamento da memória e da história não puder ser superado, de que modo a memória poderá ser constituída com sua contraparte necessária, o esquecimento? A busca das origens, talvez, seja aí um caminho possível, sendo o testemunho o modo de torná-la uma experiência comum.

Nesse sentido, as formulações sobre o testemunho e sobre a comunidade, tais como elaboradas por Agamben e Nancy, podem introduzir no campo da adoção ferramentas novas de análise. Isso é particularmente relevante no que se refere ao alcance da discussão necessária sobre a possibilidade efetiva de busca das origens do adotado. Ao mesmo tempo, ao lançarmos novas perspectivas sobre o campo da adoção permite-se vislumbrar sua expansão, de modo a torná-lo um objeto privilegiado para os estudos que têm ênfase no fenômeno mais geral da constituição subjetiva.

Concluímos que a memória expressa na busca das origens não se dissocia do resto que a operação simbólica de constituição da família substituta institui. Esse resto, que se traduz como lacuna, responde pelo nome de família natural, denominação advinda do processo judicial que permitiu a adoção.

 

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*Psicólogo, Chefe do Serviço de Apoio aos Psicólogos da Corregedoria Geral da Justiça – RJ, Professor convidado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UniRio).

 

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